terça-feira, 28 de maio de 2013

Direito por linhas tortas

Podia começar esta crónica  referindo provérbios, aforismos ou sentenças filosóficas sobre a natureza e fragilidade humanas. Mas não é preciso. A história conta-se em poucas linhas e o que dela se tira dá pano para reflexão e construção das nossas próprias ilações e sentenças.
Ela era jovem, cheia de vida, instruída e bem instalada na vida. Exigente e crítica, não era de aprofundar relacionamentos. Ele era um pobretanas, que dividia a a casa e uma doença hereditária  com a mãe. A expensas de uns padrinhos sem filhos, conseguiu estudar. Obcecou-se pela cultura geral e informação do mundo em particular e a sua mente começou a dar sinais de desequilíbrio.
Em comum tinham a esplanada do final da tarde e parte da roda de conhecidos. Temas variados, piadas soltas, gargalhadas, perguntas com respostas já adivinhadas. Ele sentia-se importante pelo saber. E olhava-a para confirmar o espanto ou desinteresse dela. Às vezes, ela atirava-lhe uma pergunta tola com ar solene e ele encetava uma resposta cheia de explicações e palavreados.
Um dia, o moço escreveu-lhe uma carta. Numa caligrafia alinhada, expôs o seu coração em frases barrocas, cheias de estilo. Dobrou-a como uma daquelas esculturas japonesas em papel e pediu a uma amiga que lha entregasse. Na tarde seguinte, o tema puxado à galhofa era a  utilidade das cartas de amor. A segunda carta correu de mão em mão, oferecida por ela aos amigos. Então ela já te respondeu? Ainda não. Porque não falas com ela? Prefiro assim. E o assim durante algumas semanas.
Diferentes mundos, diferentes caminhos. Ela caminhou em avenidas largas. Ele ficou parado no seu beco sem saída.
Passaram vinte anos. Ele vive sozinho, embora rodeado dos companheiros do lar. Mantém o gosto pelos livros e pelos jornais. Todas as manhãs, agarrado às muletas, que lhe devolveram o andar trôpego, atravessa meio bairro para comprar o jornal.Senta-se na mesma esplanada e vai comentando em monólogo o mundo, com os vizinhos das outras mesas.Ela vive sozinha, amarrada a uma cadeira de rodas, por uma doença que não escolhe nem idade nem dinheiro. Já não tem exigência nem crítica nem futuro. Só o presente. Sem cartas de amor.

segunda-feira, 20 de maio de 2013

Gramática e Semântica

No meio das incongruências políticas com que somos premiados todos os dias, vão também saltando aqui e ali outras incongruências. Gramaticais e semânticas, a bem dizer. Não é que eu entenda muito da natureza destes palavrões, mas do que eu vou aqui falar não há enquadramento económico, desportivo, cultural ou recreativo, pelo que se encaixa aí na perfeição.
Vamos lá: num dia da semana que passou, o Presidente da República, não sei se no ardor do discurso inflamado sobre a austeridade , se no estertor da defesa da mesma, e entalado na péssima dicção que vem ultimamente desenvolvendo, saiu-lhe um "cidadões" para aqui, um "cidadões" para acolá. Como nesse momento da reportagem televisiva estava com umas coisas entre mãos (rás parta a cebola!), o meu cérebro não reagiu de imediato. Fcou, no entanto, uma nódoazita à tona dos líquidos, que foi espalhando e incomodando. À noite, parou tudo, parei tudo. Tinha de ouvir a peça. E lá estava o "ões" da indignidade gramatical. Ó senhor Presidente, que lhe falte letras na sua oralidade, que confunda os "r" com os "g" vá que não vá, pois que não sendo locutor de rádio, a mais não será obrigado. Mas CIDADÕES? CIDADÕES? Santa paciência! Eu que passo um terço do meu dia a martelar na cabeça dos moços (salvo seja!) o singular e  o plural, que risco com quase fúria as desafinações do género e número, ainda tenho de levar com um presidente que maltrata a Língua? Por favor, despalite o bolo-rei dos dentes, recomponha-se, olhe para a sua mestra Maria e fale como deve ser! 
A outra incongruência deu-se ontem. Via Tweeter. Via deputado. Carlos Abreu Amorim, também no ardor do discurso clubístico, ou no estertor do reinado político, desabafou em mensagem eletrónica que quem não é do clube do Porto é Magrebino! Redutor, o futebol: se não és deste mundo azul dos quatro costados, então só podes pertencer à turba acéfala dos rafeiros sem casa nem dono, que ocupam a outra parte do mundo que é magrebino! Dois insultos numa só frase. É obra. E é este ser surreal um DEPUTADO. Claro que ele pode ter a vida que quiser, o clube que quiser,  que tem direito a ter vida para além de deputado. Mas não se pode esquecer de que é uma figura pública e que não pode dizer bacoradas da boca para fora. Ninguém lhe dá o direito de usar nomes com segundos sentidos! Quem são os Magrebinos? Os habitantes do Magreb. Tão só. São pessoas como todas as outras. Usar o seu nome com sentido pejorativo, para desvalorizar outros, para acentuar divisões Norte e Sul, isso é baixo e ridículo. Componha-se, homem de Deus! Fale como deve ser que o seu ordenado de deputado é pago pelos contribuintes deste país, com as mesmas origens que as suas!