terça-feira, 1 de março de 2016

As casas





Hoje recebi a noticia de que a casa onde me fiz gente está vazia e pregada com barrotes. Logo um montão de imagens, ruídos e pessoas me acudiram ao pensamento. 
Ainda oiço o toque da campainha e o chiar da porta da rua. E recordo a passadeira listada da escadaria que abafava os passos, o gradeamento do corrimão de madeira escura que orientava a subida, o espelho pomposo que recebia ao cimo das escadas, as portas de chaves grandes e dentes largos, as clarabóias que beijavam o céu e enfrentavam o vento, a chaminé que atravessava dois pisos, invadia a privacidade do quarto e rompia o sótão para respirar. Lembro as janelas enfeitadas com cortinas de renda que tremiam quando passavam os carros e os camiões. Tão nítidos ainda são os pregões de gente atarefada e os gritos da criançada fazendo rolar o arco ou empurrando os cabazinhos pelas bermas dos passeios. 
Agora não está lá ninguém, nem na casa, nem na rua. 

As casas são o que são, representam o que representam, valem o que valem. Como as ideias.
As casas são o abrigo, o aconchego, o espaço onde descobrimos a vida. Elas representam a nossa relação com a família, com os amigos, com os vizinhos, até com a rua. Representam também o nosso modo de vida, o nosso contexto socioeconómico. As casas valem a nossa memória, o nosso afecto.
Saber que a  casa onde vivi está moribunda de abrigo, de descoberta, de relação, de memória e de afecto, entristeceu-me. Senti saudade do tempo que galopante passou por mim.
Tudo na vida tem um tempo e um espaço. Tudo nasce, cresce e morre. Até as casas, até as pedras.
Ainda não há muito que li um poema de Ruy Belo a propósito da degradação das ruas e das casas. Sinto agora que essa leitura talvez tenha sido premonitória, uma espécie de crónica de uma morte anunciada.

Oh as casas as casas as casas
as casas nascem vivem e morrem
Enquanto vivas distinguem-se umas das outras
distinguem-se designadamente pelo cheiro
variam até de sala pra sala
As casas que eu fazia em pequeno
onde estarei eu hoje em pequeno?
Onde estarei aliás eu dos versos daqui a pouco?
Terei eu casa onde reter tudo isto
ou serei sempre somente esta instabilidade?
As casas essas parecem estáveis
mas são tão frágeis as pobres casas
Oh as casas as casas as casas
mudas testemunhas da vida
elas morrem não só ao ser demolidas
ela morrem com a morte das pessoas
As casas de fora olham-nos pelas janelas
Não sabem nada de casas os construtores
os senhorios os procuradores
Os ricos vivem nos seus palácios
mas a casa dos pobres é todo o mundo
os pobres sim têm o conhecimento das casas
os pobres esses conhecem tudo
Eu amei as casas os recantos das casas
Visitei casas apalpei casas
Só as casas explicam que exista
uma palavra como intimidade
Sem casas não haveria ruas
as ruas onde passamos pelos outros
mas passamos principalmente por nós
Na casa nasci e hei-de morrer
na casa sofri convivi amei
na casa atravessei as estações
respirei - ó vida simples problema de respiração
Oh as casas as casas as casas